Além das dificuldades de se governar sem uma base de apoio no Congresso Nacional e com uma estreita margem vitoriosa que possibilitou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ser eleito o chefe do Executivo federal, o petista passou a contar com um outro problema desde que assumiu o Planalto para conduzir o país pela terceira vez no século: o desalinhamento de seus ministros. Políticos que integram o governo passaram a anunciar medidas que teriam apoio popular, ou ao menos no eleitorado já identificado com as pautas defendidas pelo Partido dos Trabalhadores, sem que houvesse um debate interno para análise de viabilização do projeto. De janeiro até o presente momento, ou seja, ao longo dos 100 dias do início da gestão do governo federal, Lula precisou desautorizar seus chefes ministeriais a realizarem anúncios sem o aval da Casa Civil. O posicionamento do petista aconteceu na abertura da reunião televisionada pela TV Brasil no dia 14 de março, na qual o presidente pontuou que citaria aos ministros casos que "já aconteceram e não podem mais se repetir". Para relembrar os casos que levaram o mandatário a pedir para os ministros das mais diversas áreas – de Portos e Aeroportos à Previdenciária – a não individualizarem as ações e a não prometerem o que não poderão cumprir, a equipe de reportagem elencou os principais desencontros entre as falas de ministros e o posicionamento do governo federal.
O ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França (PSB), anunciou no dia 13 de março que sua pasta lançaria um programa denominado "Voa, Brasil". Nele, aposentados, estudantes, servidores públicos e brasileiros com um determinado limite de renda teriam a oportunidade de comprar passagens aéreas por R$ 200. Segundo França, a ideia do governo federal era de emitir 12 milhões de passagens ao ano para fomentar o setor aéreo e preencher os voos domésticos cujos assentos estejam disponíveis entre os meses de fevereiro a junho e agosto a novembro – períodos considerados de baixa temporada. Em sua rede social, o ex-governador de São Paulo negou que as passagens ficariam mais caras para aqueles que fossem comprá-las fora do programa "Voa, Brasil". "O governo federal não entra com nenhum tipo de subsídio. Ele entra com a organização e os bancos, Caixa Econômica Federal ou Banco do Brasil, que vão intermediar essa possibilidade. Com isso, vamos baratear todas as passagens. A medida que você não tem mais ociosidade, as outras passagens também podem ficar mais baratas", explicou. A ideia, ao que parece, não foi comunicada ao governo federal e a repercussão negativa levou o presidente Lula a convocar uma reunião ministerial no dia seguinte pedindo aos ministros que não anunciassem nenhuma "genialidade" sem o aval da Casa Civil.
O ministro Carlos Lupi (PDT), que comanda a pasta previdenciária, afirmou em seu primeiro dia à frente do ministério que iria promover uma comissão tripartite para rever a reforma da Previdência. Na visão do político, a medida foi "dramaticamente prejudicial" aos brasileiros e disse que a Previdência é uma "dívida que o Estado tem de quem ajudou a construir o Estado brasileiro". Após forte repercussão negativa entre o mercado financeiro e o empresariado, o ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT), veio à cena, desautorizou Lupi e ressaltou que "não há nenhuma proposta sendo analisada para revisão de reforma, seja previdenciária ou outra". A ação serviu para acalmar os ânimos dos economistas e reafirmar a necessidade de apresentar os planos das pastas ministeriais a quem venceu a eleição, no caso, o presidente Lula. "Qualquer proposta, ele [Lula] acabou de me dizer e disse que eu podia explicitar, passará necessariamente pela Casa Civil antes da sua análise. Vai passar pela Casa Civil, e evidente que quem teve mais de 60 milhões de votos é que decide. Só para tranquilizar, todo mundo tem direito a opinião, mas nesse momento não há nenhuma proposta de reforma de previdência ou coisa semelhante", declarou o político baiano. Ainda assim, duas semanas após a declaração de Rui Costa, o ministro voltou a falar em mudanças e alterações no sistema de aposentadoria.
Lupi também foi alvo de uma fala de Lula após o Conselho de Previdência Social (CPS) baixar a taxa de juro cobrada pelos bancos para a concessão de crédito consignado às pessoas cadastradas no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Na ocasião, o Ministério da Previdência implementou a medida sem negociar a proposta com os bancos privados, embora Lupi tenha afirmado que o presidente da República soubesse da ação. Antes de 2,14%, por decisão do CPS – presidido por Lupi -, a taxa caiu para 1,70%, o que levou a um grau de insatisfação e suspensão dos empréstimos para aposentados e pensionistas das instituições. "Uma coisa que poderia ser boa, 100% favorável, criou um clima de insatisfação nos bancos, que precisavam ter se preparado. Não pode baixar com a facilidade que eles querem que baixe. De qualquer forma, a tese é boa e agora nós vamos ver como a gente consegue fazer para que os juros baixem de verdade. Você não precisa cobrar um juro tão alto. Mas, ao invés de anunciar, – porque eu acho que era uma coisa correta você tentar baixar a taxa de juro não apenas no Banco do Brasil -, [seria preciso] discutir inclusive com o sistema financeiro que empresta crédito consignado", comentou Lula em entrevista ao site Brasil 247 sobre a ação do ministro da Previdência.
Ainda no começo do governo Lula, o ministro nomeado para comandar a pasta do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho (PT), concedeu uma entrevista ao jornal O Globo em que afirma ter a intenção de acabar com o saque-aniversário do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). No dia seguinte, porém, Marinho usou as suas redes sociais para rechaçar o fim da medida e explicar que o futuro do saque-aniversário depende de um amplo debate junto com a sociedade civil. "A manutenção ou não do saque-aniversário do FGTS será objeto de amplo debate junto ao Conselho Curador do FGTS e com as centrais sindicais. A nossa preocupação é com a proteção dos trabalhadores e trabalhadoras em caso de demissão e com a preservação da sua poupança", publicou. Marinho também foi alvo de críticas do ex-ministro de Minas e Energia do governo Bolsonaro, Adolfo Sachsida, que também usou seu Twitter para afirmar que acabar com o saque-aniversário do FGTS seria um "erro grosseiro", já que a medida "corrige importantes distorções do mercado de crédito e de trabalho".
Assim que o governo Lula se iniciou, o comandante do Planalto optou por seguir com a desoneração dos combustíveis – gasolina e etanol – para meados do mês de fevereiro e numa clara vitória da equipe política, já que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), manifestou seu desejo pelo retorno dos tributos federais como PIS/Cofins e a Cide. Passados pouco mais de 30 dias, o ex-prefeito de São Paulo entrou em rota de colisão com a deputada federal e presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann (PT-PR). Isso porque a congressista publicou nas suas redes que a volta da taxação dos combustíveis seria, neste momento, como "descumprir compromissos de campanha" ."Não somos contra taxar combustíveis, mas fazer isso agora é penalizar o consumidor e gerar mais inflação", disse a parlamentar em seu perfil no Twitter. Mesmo com a pressão pública, o presidente Lula optou por ceder à equipe econômica para que a Fazenda conseguisse aplicar seu plano de recuperação fiscal, anunciado no dia 12 de janeiro e que prevê uma receita de R$ 28,9 bilhões aos cofres públicos com a reoneração de impostos federais nos combustíveis.
No entanto, após a decisão de Lula, Gleisi retornou ao Twitter e agradeceu ao presidente da República pela "sensibilidade" no retorno gradual dos tributos, esquecendo de mencionar Haddad. Coube ao ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), lembrar da atuação do ministro da Fazenda. "Ao adotarmos essa linha [da reoneração diferenciada], sob liderança do presidente Lula e do ministro Haddad, quem sai vitorioso é o povo brasileiro", disse. Em entrevista ao portal Uol, Haddad minimizou a situação e afirmou que trata-se de algo natural, mas aproveitou para ressaltar que a palavra final não cabe a Gleisi. "Quem arbitra os conflitos de posições dentro do governo e fora do governo é o presidente Lula", declarou. Com o fogo amigo explícito, a oposição aproveitou para capitalizar. Em fala à revista Crusoé, o senador e ex-ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro, Ciro Nogueira (PP-PI), disse estar com "inveja" dos discursos de Gleisi, que faz "mais oposição ao Haddad e ao governo do que eu". A fala teve repercussão e, aparentemente, surtiu efeito, já que Gleisi não se manifestou nenhuma vez após Haddad apresentar sua proposta de arcabouço fiscal.
Fonte: Jovem Pan